A pobreza e a desigualdade social são fenômenos socioeconômicos que têm perdurado nas diversas sociedades contemporâneas e têm sido objeto de estudos, principalmente das Ciências Sociais e Economia. Esta pesquisa procura descrever e analisar as dinâmicas psicossociais e educacionais por meio das quais as pessoas de camadas populares regulam suas trajetórias individuais nas transições entre diferentes contextos da experiência (escola, universidade, família e comunidade).
Mesmo considerando a relevante contribuição de estudos sociológicos e econômicos sobre a pobreza para a compreensão de inúmeros problemas relacionados à educação e à cidadania, este estudo visa compreender como pessoas de camadas populares em processo de formação escolar ou universitária dão significado ao contínuo das suas experiências ao cruzar os contextos e como elas negociam essas significações na construção do self sob o signo da pobreza. Por essa razão, nós usamos a noção de “membrana social” o limite semiótico (ou fronteira semiótica) que separa os diferentes contextos de vida por onde transitam as pessoas descritas como pobres ou vitimas da desigualdade social. Quando nos referimos à ideia de que as pessoas significam suas experiências sob o signo da pobreza, estamos tratando das estratégias e dinâmicas semióticas que regulam as pessoas em suas trajetórias individuais e coletivas e o modo como elas se relacionam com as múltiplas vozes que participam do seu processo desenvolvimental.
Analisamos as dinâmicas psicossociais e educacionais de pessoas de camadas populares na transição entre diferentes contextos socioculturais em três diferentes centros urbanos na Bahia. Todos os dias, no Brasil, milhões de pessoas de camadas populares fazem essa transição: elas atravessam a membrana entre a sua residência, a escola, a universidade e inúmeros espaços urbanos. Dependendo de quem narra essas transições, cada contexto pode ter diferentes significados (um exemplo muito eloquente é usar o signo “favela” e o signo “comunidade” ou “quebrada” como sinônimos de contextos de pobreza). As ruas demarcam a transição entre o “dentro” e o “fora” de cada membrana. Isso acontece, por exemplo, com adultos que são “pais” ou “membros” de uma dada comunidade e, então, tornam-se “faxineiras” ou “lixeiras” fora dos limites dessa comunidade. Neste estudo, portanto, são analisados precisamente os momentos cruciais do ato de atravessar as membranas, observando as linhas fronteiriças físicas, simbólicas e sociais de diferentes contextos no movimento da casa para a escola ou universidade, cruzando os espaços urbanos.
O que acontece com a experiência psicológica dessas pessoas quando elas cruzam a membrana ao ir da sua residência na periferia urbana para a universidade ou para a escola? Quais são as consequências dessas transições entre fronteiras? Como um dos lados da fronteira é significado em relação ao outro lado? Como estar de um lado produz autonarrativas sobre si mesmo e sobre os seus projetos de vida? Quais as consequências das definições de identidade para o acesso ao bem estar público e à construção de projetos de vida? Acreditamos que essas questões podem ser respondidas observando o atravessamento das membranas sociais e registrando os signos produzidos por essas pessoas.
A relevância deste estudo reside em aspectos científicos e aspectos sociais. No que concerne aos primeiros, o conhecimento produzido poderá ampliar a compreensão do tema da pobreza, uma vez que a maior parte dos estudos que abordam trajetórias de pessoas de camadas populares se centra na dimensão estritamente econômica. Sobre a relevância social, a partir das análises realizadas sobre as narrativas dos participantes, é possível refletir sobre elementos que constituem essas trajetórias e que, uma vez conhecidos, poderão fomentar políticas, programas e projetos no âmbito das instituições voltadas para a promoção da cidadania e igualdade social.
A fundamentação teórica está baseada nos pressupostos conceituais da Psicologia Semiótico-Cultural que possibilitam um olhar microgenético voltado para as significações subjetivas elaboradas pelos participantes da pesquisa. Em relação ao delineamento metodológico propõe-se uma pesquisa qualitativa e idiográfica. Os participantes da pesquisa são adolescentes e jovens em processo de escolarização, além de moradores locais pertencentes às camadas populares, de ambos os sexos, que vivam em contextos de pobreza e residam nos municípios de Salvador, Bahia, Brasil. São realizadas observações em diversos espaços urbanos nos quais as pessoas transitam, entrevistas narrativas e, em um segundo momento, entrevistas narrativas e semiestruturadas para elucidar possíveis lacunas, além de mapas colaborativos e grupos focais. Um aspecto complementar desta pesquisa é o estabelecimento de uma interlocução direta com pesquisadores que tratam de transições em contextos de pobreza em horizontes socioculturais muito diferentes da realidade brasileira, como na Índia, Dinamarca, Itália e China. Isso não significa que é um estudo comparativo. Nós compreendemos que a pesquisa acadêmica, por sua própria natureza, deve se beneficiar da interlocução crítica entre pesquisadores. Pensamos, do mesmo modo, que o processo de internacionalização não deve ser apenas uma estratégia formal, mas o estabelecimento de ações de cooperação efetiva com pesquisadores estrangeiros, trocando experiências e informações, na discussão sobre procedimentos, ferramentas conceituais e metodológicas, hipóteses e resultados. Por isso, prevemos a criação, no processo de realização desta pesquisa, de uma interlocução com pesquisadores que já estão realizando pesquisas sobre as dinâmicas psicossociais e educacionais na perspectiva da Psicologia Semiótico-Cultural.